[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

terça-feira, 1 de março de 2011

[0333.] CAROLINA BEATRIZ ÂNGELO || CARTA A ANA DE CASTRO OSÓRIO - 13/08!911

* CAROLINA BEATRIZ ÂNGELO *

CARTA A ANA DE CASTRO OSÓRIO || 13/08/1911

“Minha querida Ana

A nossa Ass. continua com toda a força e vigor. Já temos setenta e tantas sócias e algumas de valor: a mulher do Dr. Sousa Costa, a do Dr. Lopes d’Oliveira [Felismina Branquinho Lopes de Oliveira], a do Tomaz da Fonseca, a viúva do João de Deus [Guilhermina de Battaglia Ramos], etc. Tratamos de arranjar a biblioteca para o que se distribuíram umas circulares aos autores e editores portugueses e estrangeiros. Já recebemos algumas publicações francesas e italianas, sendo curioso o facto de se terem mandado as circulares em português e eles lá as mandarem traduzir. Procedeu-se assim por proposta da Sr.ª Sousa e Costa que é toda patriota e por isso quer que lá fora façam caso da língua portuguesa e se acostumem a vê-la. Achei boa a ideia, de maneira que a correspondência, mesmo para as associações feministas estrangeiras, irá toda em português e, nos primeiros tempos, em francês também, até que eliminemos de todo as línguas estranhas. Se não entenderem que mandem traduzir que o mesmo tenho eu feito à correspondência em arrevesadas línguas que me têm dirigido. A bandeira está a bordar, quero ver se fazemos a sessão inaugural nos primeiros dias de outubro. Peço-lhe que escreva qualquer coisa feminista, para ser lido nessa ocasião. Mande com tempo.

Fiz imprimir uma representação às Constituintes que já lá foi distribuída a todos os deputados. Aproveitei parte daquela que em tempos fomos entregar ao Teófilo Braga e redigi o resto com aponta.tos fornecidos pela M.me Jeane [Joana de Almeida Nogueira] e pelas minhas leituras feministas. Lá receberá uns exemplares da representação e estatutos que eu disse à Laura [Maria Laura Monteiro Torres] para lhe enviar. Diga se acha bem.

Estava em reunião no Grémio q.do me mostraram o meu retrato no jornaleco da Liga. Respondi ali mesmo ao lindo artigo que o acompanha [O último número da revista A Mulher e a Criança, de Maio de 1911, publica o retrato da médica na primeira página e a Redacção dedica-lhe o editorial, sendo este artigo que Beatriz Ângelo menciona] pois estavam também a Veleda [Maria Veleda, provável autora do artigo] e Vilar Coelho [Berta Leonia de Vilar Coelho, professora do ensino livre e, durante alguns meses, militante activa da Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Irmã de Alice Pestana (por parte do pai – Eduardo Augusto Vilar Coelho)]. Depois de lhe responder à letra a tudo, mostrei-lhe a minha superioridade aceitando gostosamente e com palavras de agradecimento um camarote que ofereceram à Ass. de P. Feminista para a festa que a Liga ia realizar no Coliseu [A Liga realizou, no dia 9 de Julho de 1911, uma festa de homenagem a Afonso Costa, que decorreu no Coliseu. A sessão foi presidida por Bernardino Machado e discursou, entre outros oradores, Maria Veleda]. Entenderam tão bem que agora nas assembleias gerais da Liga têm sempre palavras elogiosas para a nossa Ass. «que, afinal, dizem elas, tem o mesmo ideal da Liga, visto que procura elevar a mulher». Não imagina como elas estão de veludo para nós. É claro que é tudo fingido mas isso nada me importa visto que lhe retribuo em igual moeda, mas sempre é bom para não andarmos ostensivamente à descompostura, o que seria de m.to mau gosto entre feministas.

Não faça caso das insinuações que lhe fazem e finja que as toma m.to a sério. Não está excitada, é claro, está até m.to satisfeita e feliz - é a maneira de as arreliar mais.

O Santos está Consul em Tuy e levou a mulher com ele. Fizeram-me também uma picardiazinha; coisas minhas, afinal: não me interesso ou obsequeio ninguém que não venha em paga um ponta-pé. Isto é fadário meu.

Hei-de ver se por outro lado arranjo alguém que conheça a gente de “A Capital” por causa dos seus artigos. A respeito da Olga falou-se m.to em assembleia da Ass. e mandámos para os jornais m.ta coisa que eles houveram por bem eliminar quase. Que quer? Uns bonitos olhos e palavrinhas doces viram tudo...

A Mª Evelina de Sousa e Alice Moderno mandaram-me os seus jornais em que vêm artigos a meu respeito. Vou escrever-lhes. São belas aquisições para a Ass.

Tenho trabalhado m.to nos últimos tempos, de maneira que há 15 dias tenho estado m.to doente e talvez me resolva a ir descansar para o campo uns dias. Ai, minha querida Ana, contrariedades e decepções todos temos, mas olhe que eu há uns tempos tenho uma série... enfim, o que me vale é o meu génio - ora choro, ora rio e cá vou vivendo. Olhe, sabe o que me convinha? era que a Ana aí me arranjasse um brasileiro m.to rico, m.to rico que quisesse associar-se comigo para eu poder realizar um sonho que há m.tos anos acaricio. Se eu tivesse dinheiro que belas coisas faria! - a primeira seria a construção e manutenção dum sanatório para raparigas. Não imagina como me tenho sentido infeliz por não poder fazer nada em favor de duas pobres raparigas tuberculosas que tiveram a triste ideia de me consultar. Creio que isso contribui m.to para a minha doença. Uma delas é tão inteligente, tão feminista, tem umas ideias tão parecidas com as minhas que me deixa sempre com vontade de morrer, de deixar esta vida de amarguras e desenganos em que só os bons sofrem porque os maus não têm alma para sentir os infortúnios alheios.

Li aquele livro Inevitável Reparação, que me deixou grandes impressões!

Sua mãe veio visitar-me há dias e achei-a m.to bem disposta e um pouco mais gordinha - gostei de a ver.

A Laura Torres anda adoentada por isso pediu um mês de licença.

Os conspiradores continuam a fazer té-tés na fronteira o que obriga o nosso desgraçado país a uma despesa enorme para manter a fronteira convenientemente vigiada. Os malditos não chegam a entrar. Agora os srs. deputados andam todos à bulha por causa da eleição do Presidente. Não imagina a chicana, as questões pessoais, as porcarias que isto tem levantado! Causa tristeza tudo isto - parecem monárquicos! A não ser o nosso Afonso Costa o resto não vale dois caracóis.

Cumprimentos ao Mano Paulino e beijos ao Jéca.
Escreva sempre que possa.
Um saudoso abraço da
Sua m.to A.
Carolina

Lx. 13-8-911”

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