[Cipriano Dourado]

[Cipriano Dourado]
[Plantadora de Arroz, 1954] [Cipriano Dourado (1921-1981)]

quarta-feira, 17 de março de 2010

[0009.] MARIA VELEDA [I] || ANA DE CASTRO OSÓRIO [II] - 1909

* JULGAMENTO DE MARIA VELEDA || TEXTO DE ANA DE CASTRO OSÓRIO || 17/03/1909 *

Julgamento de Maria Veleda no Tribunal da Boa-Hora, processada por um artigo considerado ofensivo para com a rainha D. Amélia. Ana de Castro Osório, no jornal A República, toma a sua defesa.

«A mulher perante a lei

Não se pode dizer que a mulher portuguesa tenha, neste momento, razão de queixa, sob o ponto de vista das suas reclamações sociais.
O que pedimos nós ao homem, considerado no seu papel antipático de senhor e tirano?
Igualdade de direitos e de deveres.
Ora é exactamente igualdade de direitos e de deveres que o homem nos concede, igualando-nos perante a lei... condenatória.
Certamente não é pela galantaria nem pela justiça que se manifesta a generosidade masculina em frente da questão feminista; mas, nunca foi pela bondade, pela razão, nem pela inteligente compreensão dos direitos alheios, que os senhores se viram compelidos a dar as liberdades que os povos escravizados lhes reclamaram, primeiro timidamente, depois com a altivez que dá a força da razão...
Perante a lei, o que somos nós, as mulheres, neste país ideal onde floresce a laranjeira e o céu raro despe a túnica de gala azul e oiro?
Perante a lei somos iguais aos menores e aos loucos como casadas; e, se como solteiras ou viúvas, temos mais alguns direitos e liberdades sociais e civis, temos ainda a classificação política de párias, concorrendo com o nosso trabalho e o nosso dinheiro para o Estado em que nenhuma influência directa podemos exercer.
Mas toda esta desigualdade e injustiça masculina desaparece perante a lei penal.
Então sim, então somos iguais aos homens, deixamos de ser menores, inferiores, doentes, incapazes, então... para sofrer as penalidades do código somos iguais aos nossos irmãos... no crime.
Se a mulher não fosse, pela ancestralidade da educação e dos costumes, uma escrava moral do preconceito, se ela tivesse bem desenvolvida e bem nítida na sua alma a noção da liberdade e a ânsia do triunfo, teria pensado há muito na injustiça de que é vítima e escolheria tranquilamente um lugar na galeria dos criminosos célebres, que é o único onde a igualam ao seu senhor e amo.
A lei é, como se vê, uma instigadora do crime.
Eis o motivo porque a notícia do processo movido contra a distinta escritora e polemista intemerata, Maria Veleda, não causou desgosto e sim nos orgulhou a todas nós, as mulheres liberais.
Por um artigo, aliás magnificamente escrito, em que o sr. dr. delegado do ministério público, como fiscal da lei, que não como colega da distinta publicista, supôs haver ofensas à sr.ª D. Amélia de Orleães e incitamento ao ódio contra aquela senhora, nós vamos ter um verdadeiro triunfo feminista.
É discutindo os preconceitos que eles realmente se nos apresentam ridículos e balofos, como ideias mumificadas duma outra idade.
É agitando a opinião pública que se despertam as consciências adormecidas pela acção nefasta do rotineirismo.
É encarando resolutamente o perigo que ele a maior parte das vezes se converte em papão ridículo, em sombra, em coisa alguma.
Quem vai responder no tribunal da Boa-Hora, na próxima 4.ª feira 17 de março (a cinco dias da abertura oficial da Primavera, na folhinha), não é Maria Veleda a escritora distintíssima, a professora ilustrada, a mãe apaixonada, a educadora consciente, a jornalista, a polemista, a conferente...
Não! Quem vai responder é a mulher!
Isto é; quem aparece diante dos julgadores levantando a cabeça honrada com a distinção que é conferida ao nosso sexo colectivamente, é a feminista, é a combatente, a reivindicadora dos nossos direitos.
Já que a lei nos expulsa com soberba da tribuna do juiz, da mesa do advogado, das cadeiras dos jurados e até do lugar de escrivão e de oficial de diligências, nós tomamos com dignidade e até com orgulho, o lugar de vítimas, que se rebelam, que é o que na sociedade tem agora o nosso sexo, neste acordar da consciência feminina, cansada de injustiças, cansada de sofrimento inútil.
Vamos assistir ao espectáculo curioso de ver como a lei considerando a mulher um ser nulo, politicamente falando, vai julgar uma mulher pelo crime que tem por corpo de delito o artigo em que, apenas sob o ponto de vista político, se encara a figura régia da sr.ª D. Amélia de Orleans.
O absurdo é cada vez menos permitido à razão humana, e absurdo é por certo este que nos põe em igualdade de circunstâncias perante o público para quem escrevemos e perante a lei penal que nos chama à responsabilidade do que dizemos, e nos coloca na sociedade e na família como uns entes inferiores ao homem, por mais que isso nos repugne e por mais que ele hoje queira atenuar a brutalidade das leis trogloditas que nos governam, vexados por uma superioridade que em sua consciência não podem reconhecer-se.
É com curiosidade e também com orgulho que todas as mulheres conscientes aguardam o julgamento do dia 17 como uma verdadeira lição de feminismo, que será perdida.».
[A República, 17/03/1909]

[A República || 17/03/1909]

[João Esteves]

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